MEU CRISTO PARTIDO

Pe. Ramón Cué Romano, SJ

COMPRA E VENDA DE CRISTOS

Encontrei meu Cristo partido em Sevilha, na quinta-feira. Eu, esse pitoresco dublê sevilhano de rastro madrilenho. E por aqui se diz: "ir ao Jueves".

Bem, eu fui ao Jueves e no Jueves encontrei o meu Cristo, e o comprei na quinta mesmo. Judas também vendeu na quinta-feira. Mas antes de lhe dizer como, permita-me duas confidências. Um, que eu amo 'garimpar'; outro, que na arte, o tema 'Cristo na cruz' me subjuga. Os Cristos barrocos espanhóis têm minha preferência. E, se me instigarem mais, digo que são os andaluzes.

Tudo isso para explicar que eu sou um visitante regular dos Jueves em Sevilha. Eu sempre penso: quem dera se encontro no Jueves um Cristo sevilhano, pequeno, de bom tamanho, barato...

A última vez que fui, foi no mês passado, na companhia de um amigo meu: Pepe Zarazar, que também está, em sua vida, atrás de um Cristo, digo, atrás de Cristo.

Fomos ao Jueves porque Cristo – que lição – pode ser encontrado entre porcas e pregos, quinquilharia enferrujada, roupas velhas, sapatos e livros, bonecas quebradas ou litografias românticas. O importante é saber como procurá-lo. Porque Cristo perambula e está entre todas as coisas deste caminho revolto e inverossímil que é a vida.

Mas naquela manhã não o encontramos no Jueves e nos aventuramos por seu prolongamento: a Casa do Artista. Mais fácil encontrar um Cristo lá, mas muito mais caro. Ali já é uma região de antiquários. É o Cristo com impostos de luxo. O Cristo que ficou encarecido por causa dos dólares do turista americano. Porque desde que o turismo se intensificou, Cristo também ficou mais caro.

Visitamos inutilmente duas ou três lojas. Nós estávamos na terceira ou quarta.

— Quer alguma coisa, padre?

— Dar uma volta pela loja olhar, ver, nada mais...

De repente, na minha frente, deitado sobre uma mesa encrustada, vi um Cristo sem cruz. Eu ia me jogar sobre ele, mas diminuí o ritmo. Eu olhei para o Cristo de lado. Ele me conquistou desde o primeiro momento. Claro, não era exatamente o que eu estava procurando. Era um Cristo todo partido. Mas por isso mesmo me acorrentei a ele, não sei por quê.

Primeiro eu fingi estar interessado nos objetos que o rodeavam, até minhas duas mãos agarrarem o Cristo. Eu dominei meus desejos para não acariciá-lo. Meus olhos não me enganaram, não. Devia ter sido um Cristo muito bonito. Era um despojo mutilado impressionante. É claro, ele não tinha cruz, estava faltando meia perna, um braço inteiro e, apesar de manter a cabeça, havia perdido o rosto.

Eu fiquei pensando. Será muito caro? Tinha que decidir.

Eu perguntei, primeiro, o preço de um camafeu. Então de uma estatueta. Fingi desgosto.

— Que pena, é tudo muito caro. E isso?

Não ousei chamá-lo de Cristo. Estava tão mutilado. Era quase mais uma coisa que um homem. E isso? Talvez perguntar assim conseguisse um preço mais barato. Mas eu estava errado. O dono do antiquário se aproximou. Ele pegou o Cristo partido em suas mãos.

— Ah! É uma peça magnífica! Se vê que tem bom gosto, padre. Observe que tamanho esplêndido, que bom entalhe...

— Sim, mas está tão quebrado... tão mutilado...

— Não importa, padre. Aqui, ao lado, há um magnífico restaurador amigo meu. Deixa ele novo para si.

— Bem. E qual preço faz para mim?

Ele ponderou novamente, para elogiá-lo. Acariciou-o nas mãos. Mas não acariciou Cristo, acariciou a mercadoria que seria convertida em dinheiro. Eu insisti:

— Por quanto vende ele para mim?

Ele hesitou, fez uma pausa. Olhou uma última vez o Cristo. Fingiu que era difícil se separar dele. E estendeu para mim em um rompante de generosidade dizendo-me resignado e dolorido:

— Tome, padre. Leve consigo. Não é pelo dinheiro. Leve consigo. E porque é para si – e conste que não terei lucro algum com isso – três mil pesetas, nada mais. Leva uma joia.

Eu fiquei com as mãos no ar.

— Três mil pesetas? Que absurdo! É muito caro!

— Caro?

— Claro.

E nós começamos o dono da loja e eu a regatear sobre o Cristo. Ele, vendedor, exaltou as qualidades do Cristo para manter o preço alto. Eu, padre, deplorei os méritos de Cristo, como se fosse uma simples mercadoria.

E lembrei-me, é claro, de Judas. Isso também não foi uma negociação de Cristo? Mas quantas vezes vendemos e compramos Cristo, e não de madeira, mas de carne, nEle e no nosso próximo?

Nossa vida é frequentemente uma negociação de Cristo. Sem dúvida, Judas pediu mais e os sacerdotes ofereceram menos. Exatamente como eu. E Judas fingiu sair, como eu, para voltar a negociar novamente. E os sacerdotes fingiram, como eu, não estar tão interessados em comprar a Cristo, como eu, para voltar mais uma vez a insistir no preço.

Total, como de costume. Cedemos ambos. Nós dois concordamos, como Judas e os sacerdotes judeus. E quem perdeu, como no caso de Judas, como sempre, foi Cristo. Ele foi depreciado, porque das três mil pesetas iniciais em que havia sido avaliado, foi reduzido para oitocentas pesetas.

Antes de me despedir, perguntei se ele sabia a origem do Cristo e a razão dessas terríveis mutilações. Em suas informações vagas e imprecisas, me disse que achava que vinha de uma cidade – não se lembrava do nome – das serras de Aracena, em Huelva, e que as mutilações eram devidas à profanação ocorrida por volta de trinta e seis, quando da guerra espanhola. Eu tinha imaginado isso desde o começo. Apertei meu Cristo com amor e saí com ele para a rua.

Finalmente, à noite, fechei a porta do meu quarto e me vi sozinho, cara a cara, com o meu Cristo. Que ensanguentado despojo mutilado! Pobre Cristo! Um pouco mais e deixava de ser Cristo. Vendo-o assim, decidi perguntar a ele:

— Cristo, quem foi que se atreveu deste modo convosco? As mãos dele não tremiam quando ele estilhaçou as vossas, arrancando-vos brutalmente da cruz? Que rosto ele fez quando vosso rosto quebrou? Ei, o que aconteceu com ele? Ainda está vivo? Onde? Na Serra de Aracena? O que faria se hoje te visse em minhas mãos?

— Cala a tua boca – uma voz invisível e taxativa me cortou. — Cala a boca. Me perguntas demais. Como sois, homens! Quando se trata dos pecados dos outros, vossas perguntas e curiosidade nunca se esgotam. Mas, acima de tudo, como custa aos homens aprender a esquecer. Como sois! Achas que eu tenho um coração tão pequeno e mesquinho quanto o teu. Cala a boca! Não me perguntes, não penses mais sobre quem me mutilou. Deixa isso! Respeita-o! Eu já o perdoei. Eu esqueço os pecados instantaneamente e para sempre quando um homem se arrepende. Perdoo de uma vez, não por parcelas mesquinhas como vós. Cala a boca!

— Sim, Senhor, ensinai-me a esquecer e perdoar.

Mas meu Cristo continuou me insistindo:

— Ei! Por que diante dos meus membros quebrados te lembras daqueles que na guerra de trinta e seis mutilaram minhas imagens e não te ocorre lembrar de tantos que ofendem, magoam, exploram e mutilam seus irmãos, homens, no período pós-guerra? O que é pecado maior, mutilar uma imagem de madeira ou mutilar uma imagem minha viva, de carne, na qual palpito pela graça do batismo? Hipócritas! Rasgais as vestes com a memória daquele que mutilou minha imagem de madeira, enquanto cumprimentais ou prestais homenagem àqueles que física ou moralmente mutilam os Cristos vivos que são vossos irmãos.

Eu estava confuso, sem palavras. Sua voz me encurralou. Para sair daquela cerca angustiante, para ficar bem com meu Cristo, ocorreu-me dizer:

— Ei, eu vou enviar-vos para restaurar. Eu não quero, não posso ver-vos assim, partido. Vereis como ficareis bem. Ainda que o restaurador me cobre o que quiser. Mereceis tudo isso. Dói ver-vos assim. Amanhã vou levar-vos para a oficina. Aprovais o meu plano? É verdade que gostais?

— Não! Eu não gosto – respondeu o Cristo seco e duro. Tu és igual a todo mundo, falas demais.

Houve uma pausa. Uma ordem aguda como um raio veio decapitar o silêncio angustiante:

— Não me restaures. Te proíbo, ouviu?

Sim, Senhor, vos prometo, não vou restaurar-vos.

— Obrigado. – o Cristo me respondeu mansissimamente.

Seu tom me deu confiança novamente.

— Por que não quereis que vos restaure? Não vos entendo.

— Já o vejo.

— Não entendeis, Senhor, que será uma dor contínua para mim toda vez que eu olhar-vos quebrado e mutilado? Não entendeis que me dói?

— Isso é o que quero. Que ao ver-me despedaçado, sempre te lembres de muitos de teus irmãos que vivem contigo, despedaçados, esmagados, destituídos, mutilados. Sem braços, porque eles não têm possibilidades de trabalho. Sem pés, porque as estradas foram bloqueadas. Sem rosto, porque lhes tiraram a honra. Todos os esquecem e viram as costas para eles. Não me restaures, para ver se, vendo-me assim, te lembras deles e eles te machucam. Vamos ver se, assim, quebrado e mutilado, te sirvo de chave para a dor dos outros.

A voz do meu Cristo ainda parecia o eco de uma queixa eterna muito antiga.

— Veja, há muitos cristãos que se dedicam em devoção, em beijos, em velas, em flores por sobre um belo Cristo e esquecem seus irmãos, homens, Cristos feios, quebrados e sofredores. E isto eu não aceito.

Agora mesmo, nestes últimos dias da Quaresma e nos próximos dias da Semana Santa, manifestações de afeto por todos os belos Cristos crucificados são extremas em todas as cidades espanholas, mas isso não basta. Isso não se aplica se houver falta de amor pelo próximo sofredor.

Muitos cristãos tranquilizam sua consciência beijando um belo Cristo, uma obra de arte, enquanto ofendem o pequeno Cristo de carne, que é seu irmão. Esses beijos me causam repulsa. Eles me dão asco. Eu os tolero e os aguento forçado, em meus pés esculpidos em madeira, mas eles machucam meu coração. Tendes muitos Cristos belos. Muitas obras de arte da minha imagem crucificada e correis o risco de permanecer apenas na obra de arte.

Um belo Cristo pode ser um refúgio perigoso onde esconder-se em fuga da dor dos outros, tranquilizando, ao mesmo tempo, a consciência de um falso cristianismo. É por isso que deveríeis ter mais Cristos partidos. Um na entrada de cada Igreja. Um em cada procissão da Semana Santa, para gritarem convosco, com seus membros quebrados e seus rostos sem forma, a dor e a tragédia da minha segunda paixão, em meus irmãos, os homens.

Portanto, eu imploro, não me restaures. Deixa-me partido! Me pendures partido ao teu lado – mesmo que amargue um pouco tua vida. Beija-me partido!

— Sim, Senhor, eu prometo. Não haverá força que me arranque de ti.

E um beijo em seu único pé lascado foi a assinatura da minha promessa.

A partir de hoje vou viver com um Cristo partido.

DEUS TEM MÃO ESQUERDA

Na mesma tarde em que comprei meu Cristo, perguntei ao dono do antiquário no Jueves:

— Onde está o braço direito? Não há como localizá-lo?
"Impossível", ele respondeu. E não pense que não mexemos em todo o palheiro de Aracena, onde a imagem mutilada foi lançada. Encontramos, essa sim, a perna esquerda e a colamos. Mas, da mão direita, nenhum vestígio. Sabe Deus para onde foi a mão direita de Cristo.

O dono do antiquário de Sevilha não sabia, Senhor, onde estava vossa mão direita. Mas Vós, Vós sabeis. Vai que sabeis para onde foi Vossa mão direita! Sabeis? Vossa mão direita. Quem pode localizá-la? Estais continuamente desbravando e escapais sempre. Não é de admirar que não a tenhais. Vai que a arrancastes e ela anda por aí, invisível, mas eficaz, aprontando as suas.

Quem não sente de vez em quando, amigos, o toque suave da mão ferida de Cristo? Aquela mão irresistível que, sem bater na porta, mexe a toda parte. No hospital, no leito de morte, na oficina, no escritório, na fábrica, no cinema, no teatro, no espetáculo. Fica na ponta dos pés, como uma rajada luminosa e musical. No cabaré. No chiqueiro. Na lama. É um aviso perturbador: Quem está aí? Não, não, não, não é nada. Sim. É a mão direita de Cristo. Não podemos dar um passo na vida sem tropeçar na mão direita de Deus.

Mas Vós, Cristo, meu Cristo partido, só tendes mão esquerda. Posso estar pensando alguma bobagem: se fosseis apenas um homem, também poderíamos dizer que tendes uma boa mão esquerda. Mas não no sentido em que o aplicamos aos homens: "Fulano tem uma 'mão esquerda'!" E Vós, meu Cristo, não tendes a mão esquerda nesse sentido humano, de manipulação subterrânea e tortuosa, não. Na vida, faz falta saber manejar a esquerda, senão se fica falho, como Vós. Com uma mão só não se flutua bem. A longo prazo, se deve nadar com ambas. A Vós faltou mão esquerda. Foi assim convosco. Vos crucificaram, agora vos mutilam. Quem tem uma 'boa mão esquerda' nunca é crucificado. Aí é que está a coisa toda.

Eu senti que meu Cristo estava sorrindo silenciosamente.

— Quão pouco e mal me conheces. Claro que também tenho a mão esquerda.

—Vós, Senhor?

— Que seria de vós, homens, se eu não tivesse mão esquerda? Eu tenho, não para evitar ser crucificado, mas para garantir que meu Pai não vos condene. Não uso a mão esquerda para me salvar da cruz, mas para vos salvar do inferno. Entendes agora?

— Mais ou menos, Senhor.

Toda a aventura trágica e divina de nossa vida está em deixar-se conduzir pelas mãos de Deus. Mas há um elemento difícil, esquivo e perigoso em nós: liberdade. E Deus a respeita misteriosamente, infinitamente. Para nos conquistar, Deus tem duas mãos. A direita e a esquerda, que representam duas técnicas e duas táticas.

A mão direita é clara, aberta, transparente, brilhante. Dá as caras. A mão esquerda procura atalhos, faz desvios, é calculo, diplomacia. Não com pressa, se dobra à luva e a veste, se necessário. Atua a distância e finje a voz. Mas, embora esquerda, não é maquiavélica ou traidora, porque o amor a move. Para cada alma, Deus tem duas mãos, mas as usa de maneira diferente, porque todas as almas são diferentes.

Existem almas que se deixam pegar pela mão direita. Em outros, alternam a esquerda e a direita, as duas mãos de Deus. E há almas nas quais, fracassada a direita, Deus tem que usar a fundo a mão esquerda.

Com a direita, como pombas brancas ou ovelhas dóceis, Deus segurou João Evangelista, Francisco de Assis, João da Cruz, Francisco Xavier, as duas Teresas.

Para conquistar Pedro e Paulo, Madalena, Agostinho ou Inácio de Loyola, Deus teve que usar sua mão esquerda. Ante a mão direita se irritam, se rebelam, travam... Então a esquerda entra em jogo. Ela procura um disfarce e se transforma em raios, balas de canhão, em dois olhos cheios de lágrimas ou um galo que canta à noite... A mão esquerda de Deus! Aqui está, Cristo, é o que eles Vos deixaram... Parece que não fazeis nada. Com golpes repentinos e desalmados, afastamos continuamente de nosso redor aquela suave mão direita de Deus. Tenta ser um freio para nos parar: "Afasta-te!" Ela quer nos tirar da lama em que caímos: "Hoje não quero voar. Amanhã, deixe-me". Se pousa sobre nosso peito para ver se amolece nossos corações: "Isso é para as crianças e as velhas! Eu sou um homem. Deixa-me!" E Deus, então, remove sua mão direita muitas vezes. Tornamo-la praticamente inútil para nós.

Outras vezes, muitas, que sorte então, Deus não se dá por vencido. Remove a direita, mas usa a esquerda. Deixa à direita na reserva. A usará novamente mais tarde. E brinca com a esquerda. E quão irresistível, Cristo, quando decide usá-la. Ninguém lida com a mão esquerda melhor do que Deus. Seus recursos são infinitos. No passado a disfarçou de galo, relâmpago, canhão. Hoje ele a esconde com disfarces mais modernos e atuais. Ele é o ser mais atual. Rompe uma represa que varre minhas fazendas; tenho um descuido imperdoável no trabalho: a máquina arranca um braço; Estávamos no carro a cem por hora, um caminhão apareceu de repente. Minha esposa e um filho morreram na hora. Eu estava sozinho na vida; Eu nunca tive uma doença, mas o médico me diz que eu tenho não sei o que no coração. Sem álcool, sem tabaco, sem noitada, sem excesso nenhum. E isso na minha idade; Você acredita que a única filha que tenho, que já terminou a escola, uma criatura admirável, agora me vai ser carmelita descalça?; Eu tenho vinte e dois anos. As meninas do bairro me disputavam. Estou na cama há dois meses e um bom amigo acaba de me dizer que isto na minha perna é câncer ósseo. E eu vou morrer aos 22 anos? Não esperava que a morte fosse chegar. Acredita numa coisa dessas?!

Diante da mão esquerda de Deus, a primeira reação é um grito de rebelião e desespero. Esquecemos a barragem, o carro, o caminhão, o câncer, a morte, o acidente, porque achamos que eles não são os culpados. Apontamos Deus como o principal responsável por essa dor que, por ser tão terrivelmente profunda, não pode vir de criaturas. E, logicamente, enfrentamos Deus, como culpado, e gritamos com Ele, perguntamos a Ele: Por que? Nós exigimos. Nós o determinamos. Nós o desafiamos. Nós o condenamos. "Pai? Se fosseis pai, não me trataríeis assim." Nós gritamos... protestamos... nos rebelamos... e logo nos encontramos sozinhos. As primeiras lágrimas nervosas e ardentes vêm e, sem perceber, a primeira oração. Sucede o cansaço. Sozinho de novo. As lágrimas já são mais serenas. Já oramos sem protestar. Queremos beijar alguma coisa. O que? Sim, isso, já o encontramos... um crucifixo... e com um beijo dizemos a Deus: "Está bem. Seja o que Vós quiserdes".

Terrível, violenta, dura, implacável, mas bendita mão esquerda de Deus.

E expressões absurdas são formuladas: Barragem bendita que quebrou, arrasou minha fábrica, mas me aproximou de Deus. Tenho 22 anos e tenho câncer ósseo, nunca fui tão feliz quanto agora! Minha filha freira? Ele ofereceu sua vida numa clausura para a minha salvação. Eu estava muito longe de Deus...

Meu Cristo partido! Eu digo em meu nome e de todos os telespectadores que estão assistindo-vos na tela, manco da direita, oferecendo-nos a esquerda. Digo-vos, em nome de todos, porque somos corajosos em pedir desde já: Senhor, se não for suficiente para nos salvar a ternura de Vossa mão direita, usa Vossa esquerda. Disfarce-a como desejar: fracasso... calúnia... ruína... acidente... câncer... morte... Cristo, que sejamos filhos de Vossa mão... da Vossa direita ou de Vossa esquerda.

Na cabeceira da cama, amigo, ou no criado-mudo, você tem um Cristo pregado na cruz. Por que não beija a mão esquerda dele antes de ir dormir hoje à noite? E seja o que for. Ouse.

UMA CRUZ PERDIDA

Vou aproveitar a minha aparição na televisão espanhola hoje à noite para lançar um anúncio. Boa ocasião, já que contarei com vários milhões de espectadores. Um anúncio curto e não comercial. "Atenção, senhores, uma cruz foi perdida e não está sendo encontrada. Alguém porventura a encontrou? É a do meu Cristo partido. Nós não a localizamos. Ele deve saber onde está, mas não responde... está mudo...!

O negociante de antiguidades de Sevilha que me vendeu também não oferece pista nem rastro. Eu gostaria de devolver a Ele sua cruz, porque permanecer na cruz sem cruz deve ser um tormento doloroso. Portanto, amigos, peço ajuda. Uma cruz foi perdida... Algum de vocês encontrou uma cruz? Quer as características? O tamanho? Bem, veja: Não é muito grande. Cerca de noventa por sessenta centímetros. Não é muito grande, mas é uma cruz e não há cruz pequena. Além disso, é uma cruz para Cristo e, então, não há como medi-la. Com estas características é suficiente porque, em suma, todas as cruzes são iguais. Perdoe, então, minha insistência. Amigos, algum de vocês encontrou uma cruz? Ou você conhece alguém, vizinho, parente, amigo, que a tenha encontrado?

Sim... Eu sei que vocês todos estão respondendo: 'Que pergunta! Se encontramos uma cruz? Uma só? Encontramos tantas cruzes!'

E todo mundo, é verdade, tem toda razão. É por isso que agora pergunto o contrário: quem dentre vocês, amigos, quem dentre nós, não encontrou uma cruz? Em vez disso, quem não tem uma cruz? É um direito de propriedade inalienável que está sempre sendo exercido. Contra esta propriedade privada personalíssima não pode nem mesmo comunismo. Todo comunista tem sua própria cruz inalienável. Impossível socializá-la e todos a carregamos às costas, embora não seja vista. Embora nós tenhamos um sorriso no rosto. Às vezes, por ser escondida, mais pesada ainda. Você também não vêem a minha. Vocês me vêem multiplicado em todas as suas televisões, mas não vêem a minha cruz. Eu a tenho! Mesmo que não estenda meus braços em forma de cruz, mesmo que eu não apareça atrás dos meus ombros. Eu é quem sei da minha. E vocês das suas.

Todo mundo trabalha, mas todo mundo tem e trabalha com ela, uma cruz: a própria cruz. Os dois câmeras... o sonoplasta, o encarregado dos holofotes, o diretor que me acena e faz indicações e tem uma cruz. Todos, estamos todos trabalhando com a nossa cruz. Mas então o que é isso? Um estúdio de televisão espanhol em Madri ou uma cena fantástica de uma eterna Paixão?

E com a sua, também às costas, você está contemplando este programa onde quer que esteja: em casa, no vizinho, no bar. Por que você veio com a cruz assistir TV?

Ela nos persegue até a cadeira, a poltrona, a câmera. Hoje à noite, quando formos dormir, não a podemos deixar pendurada no cabide. E quando acordarmos amanhã, não precisaremos vestir a cruz. Vamos pular da cama com ela já posta. Na entrada do nosso trabalho, deixaremos o carro, a motocicleta e a bicicleta de lado. Oxalá pudéssemos todos os dias, também, deixar nossa cruz estacionada por algumas horas! Para as cruzes não há problemas de estacionamento. Elas não ocupam um lugar, embora ocupem e absorvam uma vida inteira.

Quem encontrou uma cruz? Todos, bons e maus, santos e criminosos, saudáveis ​​e doentes. Ela não respeita os partidos políticos, por mais opostos que sejam. Nem àqueles que parecem desafiar a dor com o riso e a farra de suas vidas. A pobre prostituta que, neste momento, repintada e entediada, espera sentada no bar da cafeteria ou perto da esquina estratégica, carrega uma cruz pavorosa nas costas. Ela pesa tanto que se recosta nela quando está na esquina. Uma cruz que pesa mais do que suspeitávamos. E quem se aproxima dela buscando prazer o faz fugindo de outra cruz. Com suas respectivas cruzes nas costas, os dois falam, os dois então finalmente fecham o acordo. E lá se vão os dois, descendo a rua apressadamente, ambos com a cruz às costas. E quando retornam, quando já tentaram acalmar sua fome de felicidade, sentem-se decepcionados por terem aumentado sua cruz. É maior, nela, desgosto e degradação; nele, decepção. Ah! Não valeu a pena. Tudo isso para ressurgir amanhã, novamente, a cruz do desejo nele. E nela, daqui a pouco, novamente, desgosto e fadiga. E sempre com a cruz nas costas.

Certa vez, em Nova York, tive um pesadelo terrível. Como em um filme de Ingmar Bergman. Acabava de passar alguns dias em Nova York sobrecarregado e afogado pelas massas verticais de seus arranha-céus e naquela noite sonhei com uma cidade fantástica, com uma Nova York centuplicada, onde os arranha-céus se abriam em forma de cruz e em cujas paredes e janelas infinitas iluminadas por dentro, à noite, se dividem em forma de cruz, para mostrar-me, em cada um dos pequenos orifícios, um homem crucificado. Que pesadelo angustiante naquela noite, atravessando em sonho as ruas tragicamente silenciosas e vazias, sob o olhar dilacerante de infinitos homens crucificados nas janelas dos arranha-céus crucíferos e eu, o único caminhante, arrastando minha cruz, que estava ralando no asfalto das infinitas ruas solitárias!

E isso não é verdade? Em resumo, toda cidade é um bosque, uma selva, uma colmeia de cruzes. E você sabe, amigo, por que às vezes nossa cruz é insuportável? Você sabe por que isso chega a se tornar desespero e suicídio? Porque então, nossa cruz é uma cruz solitária. Uma cruz sem Cristo. A cruz só pode ser tolerada quando você carrega um Cristo entre seus braços. Uma cruz laica, sem sangue ou amor a Deus, é um absurdo suportá-la. Não faz sentido, lhe digo.

Por isso, meu amigo, eu tenho uma ideia: eu tenho um Cristo sem cruz, olhe para ele. E você tem, talvez, uma cruz sem Cristo. Essa que você sabe. Os dois estão incompletos. Meu Cristo não descansa porque lhe falta a cruz. Você não suporta a sua cruz porque lhe falta Cristo. Um Cristo sem cruz... Uma cruz sem Cristo... Por que não os juntamos e os completamos? Por que você não entrega sua cruz vazia a Cristo hoje à noite? Sairemos na vantagem, você verá. Você tem uma cruz sozinha, vazia, gelada, negra, terrível, sem sentido. Uma cruz sem Cristo. Eu entendo você, sofrer assim é irracional. Eu não imagino como você pode tolerado isso por tanto tempo. Você tem o remédio em suas mãos. Venha, me dê essa sua cruz! Chegue mais perto! Em vez disso, dou a você esse Cristo sem descanso e sem cruz. Pegue! Eu entrego para você! Você está vendo? É sua, prodigiosamente multiplicada em todas as telas de televisão. Dê sua cruz! Tome meu Cristo! Junte-os! Pregue-os! Abrace-os! Beije-os! E tudo terá mudado. Meu Cristo partido repousa na sua cruz. Sua cruz se abranda com meu Cristo nela.

Comecei dando um aviso: uma cruz foi perdida. Eu o retiro. Não é mais necessário. Encontramos uma cruz, a nossa, que acaba por ser de Cristo."

QUEM PARTIU O SEU ROSTO?

Cristo, eu ouvira essa ameaça nos lábios trêmulos por causa do ódio muitas vezes de um homem para outro: "Olha, parto sua cara!" E sempre pensei que a raiva os cegava, em seu desafio impossível e louco. Tudo geralmente termina em um soco, um tapa, uma facada no rosto. Somente em Vós a ameaça brutal foi literalmente cumprida. Vos quebraram o rosto, de cima a baixo, em um único corte.

Eu o teria restaurado. Mas Ele proibiu. É por isso que me dedico, em um jogo de minha fantasia e de meu afeto, a restaurá-lo idealmente, colocando sobre sua cabeça sem feições os rostos que a arte universal sonhou para Cristo. Gasto neste jogo horas e horas. Museus, coleções, galerias, catedrais, pinacotecas, tudo passa pelo seu rosto em um desfile lento e saboroso.

Sinto-me Velázquez ou Juan de Mesa, com uma patetice barroca. Ou Montáñez, em beleza olímpica. Ou Fra Angelico: que rosto doce! Ou Leonardo, de infinita tristeza. Corro para Greco. Como as lágrimas da pilhagem estremecem! Horas. Nunca termino.

Mas há alguns dias eu também tive que renunciar ao consolo deste jogo. Meu Cristo partido é terrível em suas exigências; Não concede tréguas. E ele também me proibiu de fazer isto. A princípio, pensei que ele gostasse. Pelo menos tolerava silenciosamente. Até que um dia não aguentou mais e me interrompeu severamente:

— Chega! Não me coloques mais rostos. Eu tolerei teu jogo por muito tempo. Não me entendes. Não ponhas em mim aqueles rostos que pedes de esmola à arte dos homens. Eu quero ser assim. Sem rosto. Prometeste que nunca irias me restaurar.

— E continuo prometendo, Senhor – respondi confuso e sincero.

— A menos que queiras ensaiar outro jogo. Colocar-me outros rostos... Esses sim, os aceitaria.

— Quais, Senhor? Eu vou colocá-las imediatamente.

— Acho que não. Te conheço.

— Porque não? Diga-me quais rostos e eu os coloco.

— Eu temo que não entendas. E mesmo te escandalizes como os fariseus.

— Eu vou me esforçar ao máximo para entender isso. Me digais. A que rostos vos referis?

— A outros... Mas reais, não fingidos como os que inventavas, e que também são meus, como o que me cortaram.

— Ah! Eu já sei, Senhor. Vos referis aos rostos dos santos, dos apóstolos, dos mártires, das virgens?

— Vês como não consegues? Não acertas uma! – meu Cristo sorriu tristemente. Esses rostos, é verdade, são meus. Mas eu já os tenho. Ninguém os nega para mim ou os pechincha. Quero outros rostos, reivindico-os. Muito poucos ousariam usá-los.

— Eu, sim. Andai, me digais!

— Bem, tu pediste. Então não reclames.

Ele fez uma pausa para tomar forças. Respirou fundo. Hesitou. Me pareceu que estava voltando atrás. Eu estava assustado. Eu tive medo de Cristo. Mas não havia remédio. Me perguntava:

— Ei, não tens um retrato do teu inimigo por aí? Aquele que te inveja e não te deixa viver? Daquele que te interpreta mal, sistematicamente, todas as suas coisas? Daquele que sempre, em todo lugar, está falando mal de você? Daquele que te arruinou? Daquele que deu relatos ruins e decisivos sobre você? Do traidor que lhe deu uma rasteira? Daquele que conseguiu te expulsar da posição que tinhas? Daquele que colocou teu irmão na cadeia? Daquele que se aproveitou da guerra e matou teu pai?

— Cristo... não prossigais...

— Não vês... te avisei... é demais, não é?

— É desumano, é um absurdo... Mas não presteis atenção em mim. Continuai, continuai falando!

— Bem... Já reparaste nos rostos dos leprosos... dos anormais... dos idiotas... dos mendigos sujos... dos imbecis... dos loucos... daqueles que babam...?

— E o que me direis, Cristo, que esses rostos são vossos? E colocá-los?

— Naturalmente!, E mos colocarás.

— Impossível!

— Espera. Ainda não terminei. Tomes nota desta última lista e não te esqueças de nenhum rosto: deves colocar no meu rosto o blasfemador, o suicida, o degenerado, o ladrão, o bêbado, o assassino, o criminoso, o traidor, a prostituta, o viciado.

Eu fiquei calado. Impossível responder.

— Não ouviste? Eu preciso que coloques todos esses rostos no meu rosto.

— Não sei, Senhor, não entendo nada. Estes rostos no vosso rosto?

— Sim, sobre o meu. E estás surpreso que os tolere e os queira no meu rosto? Mas não vês que os carrego no coração, que é mais, infinitamente mais do que usá-los no meu rosto? Não vês que dei a minha vida por todos? Por todos, entendes? Por todos. Olha, agora vais entender um pouco o que foi a Redenção. Ouve! Eu assumi a responsabilidade, voluntariamente, por todos os pecados, erros e degenerações de toda a humanidade, ao longo de toda sua história. Tudo pesava sobre mim: meu Pai se inclinou do Céu para me ver. Ele, que sempre olha nos meus olhos. Eu sou o espelho no qual meu Pai é contemplado. Eu sou o rosto dele. Deus não tem rosto visível. Eu sou o rosto visível de Deus. Ele olhou do Céu para me ver na cruz e se contemplar no meu rosto. Ele olhou para mim e seu pasmo foi infinito. No meu rosto, ele viu, sobrepostos sucessivamente e vertiginosamente, os rostos de todos, absolutamente de todos os homens. No meu rosto estavam todos os rostos. E assim, fiquei sem rosto. Meu pai, do Céu, durante aquelas três horas de minha agonia na cruz, estava observando em meu rosto o desfile trágico de todos os rostos. Foi horrível! Entretanto eu dizia: Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem. E meu pai os perdoava. Meu pai não os condenava. Eu os amava porque eles estavam sobre meu rosto... porque eu dei por eles o rosto... porque eles eram, então, o meu rosto. Não apenas eu estava na cruz, nem morri sozinho: todos se apertaram a mim e todos morreram comigo. Eu tinha inúmeros rostos... Rostos infinitos... Nunca antes em uma televisão já passou um desfile tão nojento, tão rude e pervertido.

Meu pai não tirou os olhos do meu rosto. Ele viu passar o do soberbo, do sectário maquinando a destruição de Deus... o do assassino, frio, calculista, repulsivo... rostos tchecos... de presídios... de campos de concentração... rostos de bordéis... bocas empesteadas de blasfêmias... lábios repugnantes, babando... olheiras afundadas, marcadas pelo fogo da luxúria... pupilas obnubiladas ​​e viscosas dos drogados e hálito insuportável de vinho fermentado nos bêbados... narizes curvos de aves de rapina nos ladrões, os gananciosos... Palidez de madrugada sórdida no vício... Olhares perturbadores de perversão... de complexos psicológicos... de anormalidades misteriosas e subterrâneas... Eu senti passando por minha boca crucificada, o cigarro de ópio; o copo de uísque; a droga; o veneno; o vômito; o pus; a agonia; morte... quão ridícula é a arte dos homens... quão insondável o amor de Deus...

Meu Cristo ficou em silêncio desde então. Ele me deu a suprema e mais difícil lição e nunca mais falou comigo.

Nunca se esqueçam, amigos, esta superfície lisa e descascada do seu rosto cortado verticalmente. É uma tela de proteção diante de seu Pai. É um porta-retratos vazio. Mas já sabemos como usá-lo. Aí, amigo, você tem o rosto de um irmão que não pode ver porque o odeia! Machucou você? Continua fazendo isso? Você não pode perdoá-lo? Vá! Seja valente. Tome esse rosto desagradável e repugnante de seu inimigo... aproxime-o de Cristo, mesmo que trema sua mão... mesmo que seu amor próprio ressurja raivoso... Vá... aproxime mais esse rosto... Junta-o ao de Cristo na cruz... Se sobreponham... feição por feição... Olha... Cristo está na cruz com a face do seu inimigo! Feche os olhos... Abra os lábios... Aproxime-se deles aos pés de Cristo e os beije... E você beijará um Cristo que tem a face do seu inimigo.

Você já não o odeia... Uma voz eterna o envolve musical e carinhosamente... "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei..." E você sentirá que em seu coração, sem ódio ou ressentimento, o amor começa a despertar.